segunda-feira, 3 de novembro de 2008


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Nunca amei ninguém. O mais que tenho amado são sensações minhas -
estados da visualidade consciente, impressões da audição desperta, perfumes que
são uma maneira de a humildade do mundo externo falar comigo, dizer-me coisas
do passado (tão fácil de lembrar pelos cheiros) -, isto é, de me darem mais
realidade, mais emoção, que o simples pão a cozer lá dentro na padaria funda,
como naquela tarde longínqua em que vinha do enterro do meu tio que me amara
tanto e havia em mim vagamente a ternura de um alívio, não sei bem de quê.
E esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu: Transeunte de tudo - até
de minha própria alma -, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada -
centro abstracto de sensações impessoais, espelho caído sentiente virado para a
variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz; nem me importa.
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Fernando Pessoa (Livro do desassossego)

Um comentário:

Frido disse...

Alguma coisa às vezes tem que importar. Fernando Pessoa às vezes se joga demais no Nada e esquece-se de tentar Ser...
Entende?

Os textos deste blog são de minha inteira autoria, excetuando eventuais publicações de autoria de terceiros que são devidamente reconhecidas.
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Cinthia Freitas